Música como terapia do bem-estar

Música como terapia do bem-estar

Estudos confirmam que as atividades musicais melhoram o humor, afetam o estado psíquico e ajudam na recuperação de doentes

A frase ‘Quem canta seus males espanta’, imortalizada há quatro séculos pelo escritor Miguel de Cervan¬tes por meio do personagem Dom Quixote de La Mancha, ganhou comprovações científicas ao longo das últimas décadas que comprovam os benefícios da música para o bem-estar e a saúde.

Graças a esses estudos, desenvolvidos em várias partes do mundo, é possível afirmar que as atividades musicais melhoram o humor, potencializam a expressão e favorecem o aprendizado. Devido ao seu potencial transformador, e dependendo da experiência musical, pode afetar de forma significativa o funcionamento psíquico, provocando estados alterados de consciência, atenção, orientação e senso-percepção.

A música também tem a capacidade de auxiliar na recuperação de doentes por exercer influência sobre alguns marcadores fisiológicos como a frequência cardíaca, a respiração, o ciclo de sono e vigília, o tônus muscular e a pressão sanguínea, favorecendo a redução da ansiedade e do estresse relacionados à doença e contribuindo para o retorno do organismo ao equilíbrio.

Estudos têm comprovado efeitos positivos relacionados ao uso da música no tratamento de doenças cardíacas, câncer, doença renal crônica, depressão e demências, entre outras. Além disso, tem sido usada para tratar indivíduos com deficiências cognitivas, a exemplo de síndrome de Down e paralisia cerebral, auxiliando na aquisição de habilidades motoras e cognitivas, contribuindo para o aprendizado e a memorização, facilitando o desenvolvimento da linguagem e a socialização e, ainda, estimulando o movimento e a melhora da consciência corporal.

“Na verdade, a música é própria do ser humano. Onde houver uma pessoa adoecida, independentemente do nível de adoecimento ou do nome que se dá a essa condição, a música pode ser utilizada com finalidades terapêuticas para auxiliar na recuperação”, argumenta a musicoterapeuta Diana da Silva Teixeira, coordenadora externa do projeto de extensão Implementação da Musicoterapia na Liga de Hipertensão Arterial da Universidade Federal de Goiás (UFG), que também atua na condução do Coro Terapêutico para Idosos da Associação dos Funcionários do Fisco de Goiás (AFFEGO).

O organismo humano apresenta res¬postas complexas aos estímulos mu¬si¬cais, que envolvem alterações químicas relacionadas ao centro emocional (sistema límbico), que controla os batimentos cardíacos, a respiração e a tensão muscular, entre outras funções fisiológicas. A musicoterapeuta, que é doutoranda do Programa de Ciências da Saúde da UFG, enfatiza que a audição musical e as experiências musicais interativas estabelecem conexão direta com as emoções e a afetividade e, por isso, podem induzir a produção de dopamina, endorfina e serotonina, substâncias relacionadas ao prazer, bem-estar, relaxamento e melhor estado de humor.

“Nosso cérebro organiza os sons e cria um sistema de significados inteiramente particular, por isso, a conexão entre emoções, memórias e sentidos é variável entre os indivíduos, o que justifica as diferentes preferências musicais. As músicas favoritas são frequentemente dependentes do contexto e as preferências duradouras ocorrem principalmente devido a uma ligação emocional com uma memória associada à canção”, explica.

O conhecimento de que a música afeta a saúde e o bem-estar já existia na Grécia antiga, no tempo de Aristóteles e Platão (384-322 a.C.), e foram os gregos que estabeleceram as bases para a cultura musical do Ocidente. Entretanto, somente em meados do século 19 foi possível estabelecer uma relação entre música e recuperação dos doentes. Uma das maiores experiências aconteceu no final da Segunda Guerra, quando foi solicitado a vários músicos que tocassem em hospitais como forma de tratamento e para acalmar os feridos.

A iniciativa teve resultados tão positivos que as autoridades dos Estados Unidos resolveram profissionalizar a área para utilizar a música como terapia. Assim, em 1944 foi criado o primeiro curso de Musicoterapia na Universidade Estadual de Michigan. “A música é uma forma de expressão inerente ao ser humano, suscetível de partilha de emoções ou afetos. A interação que promove fortalece as relações humanas, aumentando a empatia e o prazer.

Além disso, favorece a evocação de memórias emocionais”, acentua o cardiologista pediátrico José Carlos Neves da Cunha Areias, professor catedrático de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, em Portugal, e autor do artigo ‘A música, a saúde e o bem-estar’, publicado na revista Nascer e Crescer (vol.25 no.1 – março/2016).


Capacidade de ajudar no controle da dor, da ansiedade e do estresse

Na literatura são encontradas referências da música no alívio da dor por ser capaz de induzir a liberação de opioides no cérebro, uma espécie de morfina natural, além de ter o poder de redirecionar a atenção para longe dos incômodos. Na área de cuidados intensivos e Oncologia, por exemplo, a música reduz a dor, a ansiedade e o estresse, e tem sido fundamental na neurorreabilitação e em condições incapacitantes, como a epilepsia ou alterações genéticas.

No manuseio da dor em cuidados paliativos, ajuda na lucidez e melhora a qualidade de vida dos doentes – quando comparada com a farmacoterapia –, evitando sedação excessiva, náuseas ou perturbações intestinais. “A música aumenta o relaxamento, ajuda e estimula a expressão do doente e facilita a comunicação com os outros, podendo trazer alguma ‘calma’ ao sofrimento, diminuindo a ansiedade, o medo e outros comportamentos negativos”, enumera o professor José Carlos Neves da Cunha Areias.

No artigo ‘Efeitos da música e da musicoterapia na pressão arterial: uma revisão de literatura’, a musicoterapeuta Diana da Silva Teixeira demonstra o potencial terapêutico da música em ambiente hospitalar, ao contribuir não apenas para a redução da pressão arterial, mas também para a melhora da frequência cardíaca e respiratória, alívio da ansiedade e da dor, aumento dos níveis de sedação e relaxamento antes, durante ou após procedimentos clínicos ou cirúrgicos.

Esses efeitos ocorrem porque a música, ao produzir uma emoção, pode induzir alterações fisiológicas que resultam em mudanças autonômicas e neuroendócrinas na contratilidade cardíaca e na resistência vascular periférica, provocando a diminuição ou o aumento dos valores pressóricos. A música também pode auxiliar no alívio de sintomas como ansiedade e depressão, além de favorecer a expressão e ressignificação de sentimentos relacionados à doença e à terminalidade da vida. “No entanto, recomendamos fortemente que a utilização da música nesse ambiente seja feita por um musicoterapeuta, a fim de evitar efeitos indesejáveis”, enfatiza.


Benefícios começam na gestação

A musicoterapia abrange vários campos de ordem física e mental, e pode ser utilizada em todas as idades, desde o feto até a geriatria. O professor de Pediatria José Carlos Neves da Cunha Areias ressalta que o feto desenvolve a audição na terceira semana de gravidez, no entanto, a música só consegue um efeito funcional a partir da semana 16 e o feto pode ouvir e apreciar os sons a partir da semana 24.

Como o estresse elevado das mães pode ter efeito negativo no desenvolvimento fetal, a música ganha importância para dar tranquilidade, contribuindo para o desenvolvimento saudável até o final da gestação. “Ouvir música desenvolve o cérebro, porque a melodia facilita as conexões neuronais, patrocinando o crescimento de diferentes estruturas cerebrais. A música durante a gestação permite à criança uma recordação do que ouviu até perto dos quatro meses, facilitando o desenvolvimento e o bem-estar em todo o período neonatal e em parte da primeira infância”, ensina.

A musicoterapeuta Diana da Silva Teixeira concorda que o fato de músicas provocarem um estado de bem-estar e relaxamento nas gestantes acaba beneficiando também o feto em desenvolvimento, dependen¬do mais das preferências musicais da mãe do que dos ritmos escolhidos.

“Acredita-se, ainda, que a música exerça uma influência sobre o ritmo cardíaco e a atividade cerebral do feto. Por isso, colocar canções que sejam agradáveis para o bebê ouvir, ainda no ventre da mãe, é uma atitude muito saudável”, orienta. A terapia musical também tem sido uma experiência importante nas unidades de cuidados intensivos neonatais, reduzindo o tempo de internação e contribuindo para o neurodesenvolvimento de crianças prematuras. Algumas publicações científicas enfatizam vários benefícios para essas crianças, como a redução do ritmo cardíaco e respiratório, a melhoria do sono e a apetência para melhor alimentação, o que também contribui para reduzir a ansiedade das mães.

Estudos comparativos com placebo mostram, ainda, efeitos muito positivos nas crianças sujeitas à musicoterapia na interação social, nas perícias de comunicação não verbal e no comportamento. Atividades musicais também podem ser importantes aliadas nos primeiros anos de vida e, entre os benefícios, estão melhora da coordenação motora e do desenvolvimento da fala, aumento da percepção corporal, desenvolvimento da criatividade e melhora das funções cognitivas, como atenção, concentração e memória.

O mestre em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem e doutorando do Programa em Psicobiologia da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto, Alexandre Gonzaga dos Anjos, salienta que os efeitos do contato com a música já na primeira infância são mais bem conhecidos do que na vida intrauterina.

Nesse caso, a estimulação musical deve começar o mais cedo possível, favorecendo tanto o desenvolvimento inicial das atividades cognitivas e motoras – como sincronização do bater de palmas e marchar ao ritmo da música – quanto a própria facilidade da aprendizagem musical. “As mudanças morfológicas no sistema nervoso têm forte correlação não só com o tempo de exposição às aulas de música, mas com o período em que essa exposição começou. Além disso, a melhora das capacidades cognitivas, para ser mais substancial e duradoura, demanda uma prática ativa em relação à música, ou seja, é recomendável estudar e praticar algum instrumento ou canto, tentando fazer disso um hábito ao longo da vida”, acentua.

Também existem estudos que evidenciam a correlação entre treinamento musical formal e habilidades linguísticas, espaciais e matemáticas. Além disso, há indícios de que a boa discriminação de altura e ritmo em música possa contribuir para o desenvolvimento precoce da leitura. Autor do artigo ‘Musicoterapia como estratégia de intervenção psicológica com crianças: uma revisão da literatura’, o psicólogo afirma que o treinamento musical contínuo pode até mesmo impactar os níveis da inteligência geral em testes de QI.

“É preciso ressaltar que o efeito não é muito expressivo, mas é duradouro. Embora ninguém se torne um gênio só por se dedicar ao estudo musical, provavelmente estará com as funções cognitivas sempre afiadas. A música favorece, ainda, a interação social entre os jovens por identificação a um determinado estilo, facilitando as conversas ou acompanhando outros eventos esportivos e artísticos”, ressalta.


Efeito positivo em crianças especiais

A terapia musical também tem sido aplicada, desde a década de 1940, em crianças com transtorno do espectro autista e, nesses casos, o efeito positivo é devido à intrínseca expressão e comunicação. O psicólogo Alexandre Gonzaga dos Anjos afirma que a música ajuda de inúmeras formas, inclusive porque existem diferentes tipos de intervenção e diferentes objetivos terapêuticos, geralmente elencados em função das áreas mais atingidas por essas condições.

Quando o foco é a coordenação motora, as intervenções costumam ser mais estruturadas, ocorrendo apenas com o musicoterapeuta e a criança. Assim, pode-se desenvolver um programa de aprendizagem com instrumentos de percussão, indo de estruturas rítmicas mais simples e avançando para as mais complexas, conforme o desenvolvimento da criança.

Se a intenção é melhorar a comunicação e interação entre as crianças e seus pais, a sessão é estruturada para que todos participem e adquire caráter lúdico e expressivo. No caso da síndrome de Down, como há perda do tônus muscular, as intervenções precoces sugerem que as crianças sejam postas a engatinhar com mais frequência e mais cedo.

Em tarefas assim, a música pode funcionar como um estímulo facilitador, levando a criança a buscar a fonte sonora. “Certas crianças e adolescentes com incapacidades físicas ou mentais desde a nascença, como na síndrome de Down, são bastante receptivos à escuta ou à atividade musical. Assim, a musicoterapia, nestes casos, facilita a comunicação, a competência social, a regulação emocional e a perícia motora”, acrescenta o professor José Carlos Neves da Cunha Areias.


Transformações em processos mentais

Quando o indivíduo está engajado em uma atividade, o sistema nervoso realiza inúmeros processos a fim de fazer com que se adapte à tarefa, e uma das evidências são as alterações das frequências das ondas cerebrais possíveis de serem avaliadas por eletroencefalografia. Neste sentido, a música funciona como um tipo privilegiado de estimulação das alterações fisiológicas e psíquicas, que são moduladas pelo nível de engajamento de cada pessoa.

Segundo o psicólogo Alexandre Gonzaga dos Anjos, quando esse contato é prolongado e de cunho pedagógico é capaz de promover transformações em nível morfológico em várias regiões do sistema nervoso. Como a música melhora o estado emocional, por consequência melhora também os processos cognitivos. “Além disso, as modificações morfológicas de regiões do sistema nervoso induzidas pela aprendizagem sistemática da música têm implicações para o processamento cognitivo em outras tarefas, com fortes indícios de que favorecem o raciocínio lógico, verbal e motor. Esse conjunto de transformações tem um impacto naquilo que chamamos de saúde mental”, acentua.

Musicistas experientes, por exemplo, apresentam maior dimensão da região anterior do corpo caloso que integra os hemisférios cerebrais, facilitando o processamento de informações por diferentes sítios; apresentam maior volume de substância cinzenta no córtex motor; maior representação neurológica da mão dominante – que implica em maior sensibilidade tátil e destreza –; maior volume de massa cinzenta na região somatossensorial, no córtex auditivo, visuoespacial e na cápsula interna; e maior densidade do hipocampo, estrutura relacionada aos processos mnemônicos (conjunto de técnicas utilizadas para auxiliar o processo de memorização).

“Analisando o que compositores famosos alegavam sobre sua experiência criativa, o pesquisador búlgaro Mihaly Csikszentmihalyi verificou que muitos afirmavam entrar em um estado de êxtase, no qual a percepção da própria existência parecia temporariamente suspensa. O que esses compositores parecem experimentar é um estado semelhante ao que meditadores de nível avançado experimentam”, argumenta, ao ressaltar que todos que têm algum contato com a música podem experimentar algo semelhante por meio de uma escuta contemplativa.

A musicoterapia é um processo sistemático de intervenção em que o terapeuta ajuda o doente a promover a saúde, usando experiências musicais como forças dinâmicas de mudança física ou mental. O professor José Carlos Neves da Cunha Areias lembra que há, essencialmente, quatro métodos diferentes para o uso da música: improvisar, ouvir, recriar e compor. Improvisar facilita a comunicação e expressão emocional; ouvir ajuda a tornar o indivíduo mais ativo ou mais relaxado, estimulando o autoconhecimento ou evocando memórias ou fantasias.

Recriar diz respeito ao uso de músicas existentes que a pessoa gosta de tocar ou cantar, enquanto na composição o terapeuta ajuda o paciente a criar música própria instrumental ou cantada. “A dimensão e a forma do efeito que a música provoca variam conforme a atividade e dependem da relação que o indivíduo estabelece. Essas alterações participam de uma cascata de eventos, que incluem desde alterações emocionais momentâneas – podendo acalmar ou deixar em um estado mais contemplativo – a mudanças neuroanatômicas e funcionais implicadas na melhora de processos cognitivos, como atenção, memória e até mesmo equilíbrio”, explica o psicólogo Alexandre Gonzaga dos Anjos.

A recuperação pode se dar por diferentes formas, seja indireta, porque a pessoa tem uma melhora no seu estado emocional e, por consequência, suporta melhor as adversidades não só da doença como do próprio tratamento; como pode ser mais incidente, porque o contato com a música atua diretamente no desenvolvimento de determinadas regiões do sistema nervoso e das capacidades cognitivas subjacentes em que a doença se manifesta.

Pacientes com distúrbios da fala, por exemplo, podem se beneficiar de um tipo de terapia chamada de Terapia de Entonação Melódica (MIT – do inglês Melodic Intonation Therapy), que tenta transpor ensinamentos do canto à fala. O psicólogo conta que mudanças comportamentais foram percebidas em estudos sobre este tipo de intervenção, assim como se constatou uma melhora da conexão entre as regiões de Broca (parte do cérebro responsável pela expressão da linguagem que contém os programas motores da fala) e Wernicke (parte do córtex cerebral que está ligada à fala). “Algumas pesquisas com indivíduos diagnosticados com Alzheimer têm evidenciado que, embora haja perda da capacidade de reconhecer emoções em expressões faciais, a capacidade de reconhecê-las na voz e na música permanece. Isso abre caminho para intervenções por meio da música”, sinaliza.


Estilos

A música clássica tem sido a mais utilizada na musicoterapia nos países do Ocidente, por ser harmônica, rítmica, com padrões estruturados que ajudam nos estados alterados de consciência, sendo reconhecida pelo seu valor terapêutico. Segundo o professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, José Carlos Neves da Cunha Areias, já está descrita a sua eficácia na condução para o relaxamento e sossego, sobrepondo-se às preferências musicais dos diferentes doentes.

Apesar dessas evidências, não existe um estilo musical específico para determinada doença e o tratamento musicoterapêutico sempre envolve um repertório que parte do próprio paciente, porque é possível que as pessoas tenham reações diferentes diante de um mesmo estímulo musical. “A relação do paciente com a música é tão importante quanto a própria música. Caso a escolha do repertório musical seja feita de forma descuidada, o resultado pode ser antiterapêutico”, alerta a musicoterapeuta Diana da Silva Teixeira.

Picture of John Doe
John Doe

Excepteur sint occaecat cupidatat non proident, sunt in culpa qui officia deserunt mollit anim id est laborum.