“Era primavera e Clara voltava de uma das últimas aulas da faculdade. Dirigia seu carro por atravancadas ruas de Goiânia. De repente, uma forte dor tirou-a de seus devaneios. Não conseguia distinguir se na região do estômago ou mais abaixo… Tratou de estacionar na primeira vaga encontrada e ligou para a mãe.” (Retirado do livro Inabalável, a vida e luta de Clara Marino)
“Assim começou minha história com a doença de Crohn, há vinte anos. Estava terminando o curso de Psicologia quando senti uma dor muito forte que me obrigou a consultar um gastroenterologista. Tive êxito ao receber o diagnóstico na primeira consulta, uma raridade para a época. No consultório, ouvi pela primeira vez a palavra doença de Crohn e fiquei imaginando o que seria, enquanto o médico tentava explicar a doença e afirmava que não tinha cura, mas meu caso era bem leve. O diagnóstico não me abalou. A juventude tem suas vantagens e, nesse período, tendemos a ver tudo pelo lado positivo.
Segui a vida e minha única preocupação era lembrar de tomar as medicações no horário. Depois de três meses de tratamento, a doença entrou em remissão e, logo em seguida, aconteceu a tão sonhada formatura. De posse do diploma comecei a trabalhar, dois anos depois me casei e mudei para São Paulo. Continuei o tratamento com um especialista, que sugeriu manter as medicações. Oito anos depois do diagnóstico voltei a morar em Goiânia. Estava tudo pronto para minha mudança e defesa do mestrado. Porém, em março comecei a ter febre, sentir dor nas costas e no lado direito da virilha. A tomografia constatou que eu tinha um abscesso no músculo atrás do intestino, que consumia minhas energias. O tratamento era composto por doses altas de antibiótico e corticoide. Assim, não pude comparecer na minha defesa de mestrado, mas isso não impediu de conseguir o diploma.
Três meses depois veio a pior notícia: eu teria de fazer uma cirurgia, pois o abscesso tinha ligação direta com o processo inflamatório do intestino. Chorei muito, tive muito medo, mas decidi enfrentar e ficar boa logo. Eu sonhava em ser mãe e, para isso, a doença tinha de estar em remissão. Tive muitas complicações pós-cirúrgicas, precisei de transfusão de sangue, fiquei com uma fístula pós-operatória, dentre outras intercorrências. Fiquei internada por 40 dias com dieta parenteral e sofri muito nesse período. Ao sair do hospital, a fístula não tinha cicatrizado e havia a perspectiva de uma nova cirurgia. No caminho para casa, me senti como um bebê quando descobre coisas novas: olhei as ruas e as casas como se fosse a primeira vez. Apreciei cada caminho, cada árvore. Foi uma das maiores emoções da minha vida, um renascimento, um amadurecimento.
Eu precisava que a fístula fechasse, e havia um biológico com 50% de chance de funcionar. Chorei decepcionada, pois, na minha cabeça, isso significava pouca chance de não fazer outra cirurgia. Mas, ao chegar em casa e ver a família triste com minha desilusão, decidi mudar minha postura. Não teria mais pena de mim e lutaria pela minha felicidade. Passei a sorrir, a acreditar que tudo daria certo, a viver cada dia de cada vez. Tomei a medicação por um ano e dois meses – era o único biológico que o SUS fornecia na época. A fístula não cicatrizou e a medicação parou de fazer efeito. Não desanimei e acreditei que tudo tinha um propósito. Passei a tomar um novo biológico que acabara de chegar ao Brasil. No primeiro dia fez efeito e, enfim, a tão sonhada remissão chegou.
Passaram-se 11 anos e, nesse período, realizei todos os meus sonhos. Tive um filho lindo e saudável, e uma gravidez sem intercorrências. Estou fazendo doutorado em Ciências da Saúde na Universidade Federal de Goiás, pesquisando os aspectos emocionais que afetam a doença de Crohn. Escrevi o livro Inabalável, a vida e luta de Clara Marino, sobre minha trajetória, contando as dificuldades e como superei tudo. Usei o nome Clara no livro porque me transformei em outra pessoa. Para melhor! Aprendi a lutar para ser mais humana, menos egoísta, a valorizar detalhes pequenos. Hoje, me sinto mais forte, segura, capaz de enfrentar qualquer obstáculo. Aprendi que não tenho de fugir da doença de Crohn, pois, quanto mais me aproximo e a aceito, melhor fico. Essa foi a grande lição da minha vida e agradeço a Deus por essa oportunidade de crescimento, ainda que tenha sido através do sofrimento. Sinto-me privilegiada, pois acredito que poucos a percebam em suas próprias vidas. A maior virtude do homem é ter fé. Acreditar sempre e lutar para superar suas dificuldades.”
Legenda foto: Andréa Toledo de Oliveira com o marido e o filho (crédito: Ludmila Fernandes Honório)