Febre amarela: o vírus, o mosquito, o medo

Febre amarela: o vírus, o mosquito, o medo

Dr. Rodrigo Contrera do Rio

Médico Infectologista da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e do Instituto de Infectologia Emílio Ribas.


Ao ouvirmos que uma mesma doença tem formas graves, mortalidade elevada, pode ser transmitida por um mosquito (infelizmente um velho conhecido nosso), não possui um tratamento específico e cuja vacina não pode ser aplicada a todas as pessoas, torna-se quase impossível não demonstrarmos apreensão e medo. Estamos falando da febre amarela. O objetivo deste texto é procurar esclarecer o que realmente é esta infecção e o que podemos fazer, do ponto de vista médico e de saúde coletiva, para reduzirmos o risco de adquiri-la.

A febre amarela é uma doença transmitida por um vírus, um arbovírus, que recebe este nome por ser um vírus transmitido através da picada de um artrópode, no caso um inseto, que é o mosquito. Existem inúmeros tipos de mosquitos diferentes, mas é importante entendermos que alguns deles, existentes em áreas de mata (Haemagogos e Sabethes), são responsáveis pela transmissão do vírus em macacos, o chamado Ciclo Silvestre da doença, enquanto o Aedes aegypti, tão bem adaptado ao meio urbano, é responsável pela transmissão em humanos, o chamado Ciclo Urbano da doença. A última vez que tivemos este ciclo em cidades urbanizadas foi em 1942, no Acre. Desta época em diante tivemos ao longo das últimas décadas várias ocorrências de humanos com febre amarela, mas todas elas relacionadas à presença do homem em ambiente silvestre.

O grande diferencial das últimas décadas, entretanto, é que não mais o ambiente urbano pode ser tão facilmente separado do silvestre. As ocupações, ordenadas ou não, de áreas cada vez mais próximas de áreas de mata, torna evidente a necessidade de considerar as pessoas que vivem nestes locais como potencialmente expostas a riscos que antes só podiam ser atribuídos a quem realmente adentrasse a mata, para acampar ou realizar uma trilha, por exemplo. Os macacos que adoecem e morrem, dentro do que chamamos de epizootias, servem na verdade de alertas, tal como sentinelas, de que algo errado está acontecendo, no caso a doença pela febre amarela. Desta forma, matá-los na ilusão de que se estaria assim impedindo a propagação do vírus não só configura crime ambiental como revela a ignorância de quem o faz.

A doença na maioria dos casos se apresenta com febre, de início em geral dentro da primeira semana após a picada do inseto, podendo vir acompanhada de dores de cabeça, náuseas, vômitos, dor abdominal, icterícia (que é a presença da pele e dos olhos amarelados, além da urina escura) e presença de sangramentos, gengivais, nasais ou pelas fezes. Não é preciso ter todos estes sintomas e devemos salientar que a febre associada aos dois últimos (a icterícia ou os sangramentos), já indicam maior gravidade e risco de complicações. Desta forma, diante do momento epidemiológico que estamos atravessando, com casos, ainda que em áreas urbanas, mas com certa dificuldade em definir se o indivíduo esteve em uma área que possa ser realmente considerada de risco, a postura é procurar o pronto socorro imediatamente para uma avaliação médica. É preferível ser tranquilizado e ter o quadro descartado, ou permanecer em observação e coletar os exames laboratoriais necessários para o diagnóstico, do que não procurar atendimento e o quadro se agravar. É sabido que, das formas mais graves, de cada 3 pacientes 1 evolui à óbito. Não há tratamento específico contra o vírus. Não existe um remédio antiviral capaz de matar o vírus. Desta forma, o tratamento efetuado é aquele ao qual chamamos de tratamento de suporte: hidratação, repouso, controle dos sangramentos, da febre, do dano hepático e renal que a doença pode causar.

Este vírus pertence ao mesmo grupo de vírus da dengue. Entretanto, o fato de ter tido infecção pelo vírus da dengue no passado não protege ou torna o individuo imune à febre amarela. Pior, o Aedes aegypti, infelizmente tão presente e adaptado no meio urbano, é capaz de transmiti-los, assim como transmite os vírus de Chikungunya e de Zikavírus, o que me parece deixar claro e evidente a necessidade contínua da população e do poder público em combatê-lo. Ainda que não possamos erradicar o vírus da febre amarela, por este ter um ciclo silvestre que extrapola os humanos, a erradicação do Aedes, portanto do mosquito, seria fundamental para a redução drástica de todas estas doenças.

Muito tem se discutido sobre a vacinação contra a febre amarela. A vacina é conhecida há muitas décadas e tem sua eficácia comprovada. Mais recentemente a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu que quem já recebeu uma dose da vacina quando adulto não precisa mais ser  revacinado, posto que antes era sempre recomendada uma dose de reforço após dez anos da primeira, o que hoje não é mais necessário, dado o longo efeito protetor comprovado. Dentro desta perspectiva foi natural ter sido gerada a preocupação sobre a vacina fracionada, no que tange à sua capacidade de proteção. É importante reiterar que esta vacina é a mesma vacina que a atualmente aplicada, mas que será feita em doses menores visando maior cobertura da população de risco em um menor tempo, posto que não há tempo hábil para se esperar a produção vacinal de doses plenas para toda a população desejada. Acredita-se pelos estudos publicados que a dose fracionada deva proteger por, no mínimo, oito anos, cabendo novos estudos daqui por diante para avaliar o momento certo de uma revacinação de reforço para quem receber esta dose.

Estas vacinas são vacinas de vírus vivos atenuados, ou seja: diferentes, por exemplo, de uma vacina contra a gripe, que é de um vírus inativado, a vacina contra a febre amarela pode causar reações vacinais em indivíduos com o sistema imunológico comprometido.

E é neste ponto hoje talvez que incida a maior dúvida: quem pode e quem não pode ser vacinado?

Falar em imunidade baixa é um conceito muito abstrato. Há pacientes com Aids que, por estarem com o tratamento adequado e a doença sob controle, apresentam bons níveis de imunidade, e são indicados para receber a vacina. Ao contrário, há pacientes que usam corticóides orais por tempo prolongado, uso diário, e que desta forma não podem receber a vacina, cabendo aguardar no mínimo quatro semanas sem o uso da medicação (o que nem sempre é possível) para assim fazê-lo, não sem antes receber uma orientação médica para ponderar o risco-benefício de tal conduta.  Idosos acima de 60 anos devem, da mesma forma, passar pela mesma avaliação. Se residirem em áreas de risco e não apresentarem condições que causem imunodepressão, devem ser vacinados, cientes de que neste grupo o risco de reações adversas é um pouco maior do que na população geral.

Neste contexto é importante considerar os pacientes com Colite Ulcerativa e Doença de Crohn como pacientes com risco potencial de eventos adversos à vacina, posto que muitos fazem uso de medicações imunossupressoras diárias, como corticóides sistêmicos, azatioprina, infliximabe, adalimumabe, entre outras medicações imunossupressoras, sendo contra-indicada a vacina contra febre amarela nestas condições, cabendo o uso de medidas protetoras, como o uso de repelentes.

O momento ainda é de incertezas. Não podemos ainda afirmar que não haverá um ciclo urbano da doença, dada a proximidade das áreas de mata com as urbanas. Numa eventual situação de recorrência de um novo ciclo urbano, poderão haver modificações nestas condutas, visando o risco-beneficio de se vacinar, tal qual hoje se pensa para as pessoas que residem dentro de áreas de risco, o que justifica por exemplo vacinar idosos sem comorbidades que residam, por exemplo, na Serra da Cantareira ou em Mairiporã. Mas infelizmente nem tudo é tão óbvio e as mudanças estão ocorrendo em tempo real. É preciso sempre consultar o seu médico antes de qualquer conduta, evitar áreas de risco, usar repelentes, intensificar o combate ao mosquito Aedes. Quanto maior o contingente da população vacinada, melhor inclusive para aqueles que não possam receber a vacina, dada a redução da capacidade de circulação do vírus nestas circunstâncias. É preciso um equilíbrio entre os agentes formadores de opinião, de forma a não gerar pânico nem parecer banal. A situação é séria e exige atenção permanente.

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John Doe

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